Por que a criminalização do coaching?

Estão querendo usar o Direito Penal para coibir o coaching. Esta proposta fez e faz muito mais barulho do que a pretensão, já relativamente antiga, de regulamentar a profissão. Claro, crime dá ibope né.

O assunto foi tema de uma abordagem interessante na imprensa:

Já existe coach para quase tudo: carreira, relacionamento, sexo, finanças, emagrecimento e até bebês. Com alta oferta de profissionais e nenhuma regulamentação no setor, fica difícil separar quem é sério de quem não é.

“Qualquer um se intitula coach de alguma coisa, e, aí, a gente tem um grande problema”, afirma Marcus Baptista, vice-presidente no Brasil da ICF (International Coach Federation), entidade que atua em 145 países.

A banalização da atividade tem gerado reações, desde ideias para regulamentar a carreira até para proibi-la.

Em apenas oito dias, uma proposta para criminalizar a prática, registrada na plataforma de participação popular do Senado, recebeu mais de 20 mil assinaturas –número necessário para ser encaminhada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Se aprovada, a sugestão pode virar projeto de lei.

 

Qual o real objetivo da proposta?!

 

Segundo o texto, o objetivo é impedir “o charlatanismo de muitos autointitulados formados sem diploma válido” e “propagandas enganosas, como ‘reprogramação do DNA’ e ‘cura quântica’, que desrespeitam o trabalho científico e metódico de terapeutas e outros profissionais das mais variadas áreas”.

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A personagem da série Billions Wendy Rhodes (Maggie Siff), que atua como coach"Reprodução
A personagem da série Billions Wendy Rhodes (Maggie Siff), que atua como coach”Reprodução

O autor é o sergipano William Menezes, que tem apenas 17 anos e faz curso técnico em informática. O estudante diz que escolheu a palavra “criminalização” para o título da proposta como uma forma de chamar atenção para a falta de controle sobre a atuação do coach.

 

Para ele, é necessário enquadrar a prática dentro da lei, seja regulamentando ou criminalizando sua atuação. “Uma pessoa em exercício ilegal da profissão de psicólogo vai presa. Por que alguém que se autointitula coach não?”, diz.

 

O texto está sob a análise do relator, o senador Paulo Paim (PT-RS). Por meio de sua assessoria de imprensa, o parlamentar disse que, antes de apresentar seu relatório, vai fazer uma audiência pública com as partes e com a sociedade e chegar a um entendimento que seja bom para todos.

A ideia de criminalizar toda a categoria profissional gerou mais atenção e apoio do que outras propostas que discutem a prática do coaching. Na mesma plataforma do Senado, o portal e-Cidadania, há três sugestões para a regulamentação da carreira de coach. A que conta com maior apoio ainda não conseguiu 5.000 assinaturas.

Nos Estados Unidos, também se discute a ausência de regras no setor. O tema é pano de fundo, por exemplo, do seriado “Billions”, produzido pelo canal Showtime e disponível na Netflix.

 

Nela, a psiquiatra Wendy Rhodes (Maggie Siff) atua como coach em uma empresa de investimentos, com o intuito de melhorar a performance dos funcionários (atenção, spoiler). Ao infringir limites éticos, ela fica sujeita a sanções do conselho de medicina, mas, como coach, sua atuação não é comprometida.

 

Na opinião do psicólogo Sigmar Malvezzi, professor da USP e da Fundação Dom Cabral, há de fato uma vulgarização da atividade, mas o caminho para resolver isso não passa pela regulamentação.

 

“É difícil negar espaço a uma profissão que a cada dia se faz mais necessária”, afirma. Para ele, o indivíduo hoje precisa de apoio para lidar com um mundo do trabalho mais precário, instável e volátil.

 

“Na teoria, é fácil regular. Mas, na prática, com a pressão de mercado e a flexibilidade de um mundo sem fronteiras, é muito complicado.”

 

Existe uma saída?!

 

Uma saída, diz ele, seria fazer um acompanhamento do que acontece na área, estimulando pesquisas sobre o tema dentro das universidades.

Junto ao sucesso desse tipo de suporte ao indivíduo, surgiu uma indústria poderosa de formação de coaches, com escolas que seguem diferentes correntes teóricas e padrões de qualidade –algumas oferecem programas com duração de um fim de semana.

 

“Existe uma propaganda enganosa de que é só fazer um curso para ganhar grana com uma atividade que ajuda as pessoas. Não é verdade, não é fácil conseguir cliente e, para ser bom, é necessário muito estudo e prática”, diz Ana Luisa Pliopas, coach e professora da FGV (Fundação Getulio Vargas).

 

Para garantir a qualidade das escolas e dos profissionais da área, Marcus Baptista, da ICF, defende o controle do próprio setor, por meio de certificações. “Não somos contra ter uma regulamentação, pelo contrário. Mas oferecemos uma alternativa estruturada e robusta, que as empresas reconhecem”, diz ele.

Para receber o credenciamento básico da entidade, o coach precisa ter pelo menos 60 horas de formação específica, dez horas de mentoria, cem horas de experiência com no mínimo oito clientes, avaliação de desempenho em áudio e teste de conhecimento.

Não existe uma explicação única do que é o coaching. Segundo a ICF, a atividade é uma parceria estabelecida entre o coach e o cliente “em um processo instigante e criativo que o inspira a maximizar seu potencial pessoal e profissional”.

Não se trata de um aconselhamento de carreira, mas um processo que apoia o sujeito a desenvolver habilidades pontuais. A ideia é ajudá-lo a entender o que ele busca e o que precisa fazer para alcançar esse objetivo.

A diretora de marketing Fernanda Hermanny, 44, passou por três processos de coaching em diferentes épocas. No último deles, contratado pela empresa em que atua, buscou desenvolver o autoconhecimento e, assim, sentir-se mais segura.

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A diretora de marketing Fernanda Hermanny, 44, em São Paulo
A diretora de marketing Fernanda Hermanny, 44, em São Paulo

Durante um ano, fez sessões mensais com um coach, que já havia atuado como executivo de uma grande companhia. Gostou tanto que o contratou para mais oito sessões por conta própria.

“Foi positivo. Me deu motivação e perspectiva de futuro, de como direcionar a minha carreira e de quais caminhos estou disposta a tomar.”

Uma das razões para a criminalização do coaching:

Falta de qualificação pode trazer danos emocionais ao cliente

 

A atuação de um coach charlatão –ou mal preparado– pode trazer não só prejuízos financeiros ao cliente, mas também emocionais e psíquicos.

Insatisfeita com seu emprego, a engenheira química Mariana Lopes, 30, contratou, em 2010, uma coach para ajudá-la a decidir qual carreira seguir. “Ela dizia que terapia focava o passado, era demorada e não dava resultado. Já o coaching olhava para o futuro”, diz.

Já nas primeiras sessões, Mariana afirma que se sentiu num processo de inquisição. Ela conta que a profissional fazia perguntas como “essa é a melhor forma de viver a sua vida?” ou “quando estiver com 70 anos, vai perdoar essa sua atitude de hoje?”.

Segundo Mariana, a coach insistiu para que ela relembrasse, por meio de hipnose, situações difíceis que viveu no trabalho e durante um relacionamento abusivo. “Eu tinha problemas de ansiedade, mas estava controlada. As sessões fizeram com que as minhas crises voltassem”, diz.

A engenheira concluiu as 12 sessões que havia contratado por R$ 1.500, mas não quis renovar o serviço. “Precisei procurar uma psiquiatra e uma psicóloga, e essa, sim, me ajudou muito”, conta.

 

Criminalização do coaching: leia mais

 

Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, discursos que idealizam a força de vontade e colocam a culpa por fracassos no indivíduo podem mais atrapalhar do que ajudar. “Pode gerar aumento da culpabilidade e dos sintomas. Não é uma estratégia muito feliz do ponto psíquico.”

Ele também rebate a ideia de que a psicoterapia só trabalhe com o passado. “Há muitas formas que se orientam para o futuro. São as psicoterapias breves”, diz.

 

A atuação indevida de coachs com pacientes com transtornos mentais, caso da depressão, também é motivo de preocupação para a Associação Brasileira de Psiquiatria.

 

A entidade emitiu, em maio, uma nota na qual condena a propagação de tratamentos não científicos e diagnósticos errados feitos por profissionais sem formação adequada em saúde mental. “Esses profissionais, que se apresentam como coachs, podem causar diversos prejuízos, não apenas à sociedade, mas aos que se especializaram durante anos para oferecerem o melhor ao paciente”, diz o documento.

De acordo com o advogado Igor Marchetti, do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o coach que tratar doenças psíquicas pode ser condenado por exercício ilegal da profissão, imperícia e charlatanismo. E então sim, caracterizaria criminalização do coaching.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/